Nenhuma mulher que cresceu nos anos 1990 e 2000 estava a salvo das revistas femininas. “Como se vestir”, “a dieta da vez”, “alise seu cabelo com tal produto, “o que os homens mais procuram”… A lista de demandas era interminável e impossível de seguir. Aparentemente inofensivas, tais matérias perpetuaram toda uma visão patriarcal em relação ao corpo feminino que perdura até hoje na sociedade e nas próprias mulheres.
Perdura, inclusive, em Helô D’Angelo, ilustradora e quadrinista.
“Eu me senti muito aliviada escrevendo esse livro, muitas coisas estavam morando na minha cabeça há anos e, conseguir colocar tudo isso no papel, me deixou muito feliz”.
“Nos Olhos de Quem Vê” é o novo livro da autora que, após escrever uma ficção sobre adentrar no mundo adulto e uma “quase” ficção sobre o isolamento causado pela Covid-19, Helô deposita todos os seus medos, ideias e sentimentos nessa HQ autobiográfica.
Segundo ela, o processo de criação da obra foi mais caótico do que outros pelos quais ela costuma passar.
“Foi um verdadeiro fluxo de consciência. Escrevia com caneta bic, em um traço despreocupado… Terminei o livro em 3 meses”, contou a autora.
A edição da obra levou mais tempo, mas todo a verve inicial do projeto está ali. Helô se abre com o leitor, mostrando todas as suas inseguranças, através de lindas ilustrações e um ritmo rápido de leitura, com pausas para reflexões acerca do tema.
Dividida em capítulos, a HQ trata de aspectos naturais do corpo humano que são demonizados se estiverem inseridos no contexto femino como: rugas, pêlos, gordurinhas e manchas.
Para escapar de suas próprias convicções, e instigar o leitor a rever as dele, Helô desenha figuras justamente com esses “defeitos” e toda ilustração vem acompanhada de textos normalizando o que, em relação aos homens, já é comum.
Inclusive, sempre que a figura masculina cis-heteronormativa aparece é impossível não dar risada. Através de um humor refinado, Helô coloca em cheque escolhas estéticas de homens que, ao julgarem mulheres, não olham para si próprios. Essas figuras funcionam como uma representação da sociedade, responsável por ser a “estraga-prazer” de qualquer sentimento de empoderamento em relação ao corpo feminino.
Uma das passagens do livro aborda justamente isso ao falar sobre seios, por exemplo. Para uma Helô adolescente, ter “peitos” significava ficar linda de decote, ser aceita por outras mulheres e usar belos sutiãs. A realidade enfrentada pela autora, porém, foi bem diferente: dor nas costas, mais assédio, sutiãs caros com moldes que não funcionavam e, por fim, assédio.
Utilizando muita ironia, a HQ passeia por diversos gêneros e emociona ao atravessar toda a vida da autora, sua relação com o próprio corpo e com outras mulheres.
“Eu entrei em uma missão de rever esses padrões para mim mesma. Me perguntava de onde isso vinha, voltei para várias partes da minha vida, revisitei relações com a minha mãe, irmã, avó e amigas”, disse Helô.
Um dos fios condutores da HQ é a mãe de Helô que ao reproduzir ela mesma os padrões de beleza patriarcais, repassava-os para a filha.
A obra traz um verdadeiro mergulho na relação das duas, com reproduções de diálogos e mensagens trocadas na vida real. O que perdura nesses momentos é uma certa raiva, um pouco de ressentimento, mas, principalmente, muito perdão e respeito.
“Minha mãe ainda não leu o livro”, diz a autora, “disse a ela que ia ser um pouco duro, que precisava falar sobre as coisas que vivi, mas não queria que fosse um ataque”.
O livro, afinal de contas, é dedicado à mãe de Helô e mostra uma dinâmica de relação muito comum entre mães e filhas que, refletindo juntas e deixando de lado pressões estéticas que atravessam gerações, conseguem chegar a uma mesma conclusão: é possível se amar do jeito que é.
Novos leitores
Como parte de sua estratégia de divulgação, Helô publica algumas vezes por semana partes do quadrinho em seu Instagram. Em outras obras da autora, elas funcionavam como um pequeno spoiler do que esperava o leitor que comprasse o livro, hoje, elas significam engajamento e um maior alcance.
“Apesar das pessoas já saberem o que vão encontrar, elas querem um registro físico da história, por isso compram o ‘físico’”, diz.
Para Helô, o consumo na Internet é muito efêmero, se vê muito conteúdo em poucos minutos, mas colocar trechos da obra nas redes sociais suscita discussões proveitosas.
“Eu ganhei muito público para o meu livro fazendo isso, além de ser acolhida por quem leu e se identificou com tudo que eu passei”, afirmou a autora.
“Nos Olhos de Quem Vê” é a narrativa contrária àquela da adolescência de muitas mulheres; mudar o que se é para amar o que se é.
Helô não quer mais que isso aconteça e, segundo ela, depois do processo de escrita do livro, já consegue ver o próprio corpo com mais carinho e aceitação.
No epílogo da obra, Helô faz um lindo exercício de citar tudo que ela gosta nela mesma, desde sua aparência, até sua força e determinação.
E, depois de tanto nos mostrar e fazer refletir, nos convida a fazer o mesmo. De primeira, não é fácil, mas nada que uma segunda, terceira e quarta leitura não ajudem.
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