Um amigo ganhou um prêmio de uma sociedade literária. O prêmio inclui uma quantia em dinheiro.
Seus amigos e colegas viram como um reconhecimento, pois o premiado tem uma longa vida profissional como especialista em ciências ocultas e letras apagadas, como diz, citando o Millôr, quando se refere às disciplinas humanas.
Alguns mencionaram a graninha boa, reduzindo o prêmio ao dinheiro, e não ao reconhecimento de uma obra. Um parvo falou que ele recebia o prêmio porque escreveu sobre temas populares, esquecendo um detalhe capital: nas ciências humanas, o que conta não é bem do que se fala, mas como se fala. Pois o trivial é assumir o senso comum, e o extraordinário é lançar sobre o familiar um olhar que equilibra familiaridade e estranhamento. Falar de futebol como um jogo é uma coisa. Falar dele como um ritual competitivo promotor de uma experiência de igualdade de respeito a normas impessoais de todos conhecidas é tentar entendê-lo por meio de uma visão não rotineira.
Um conhecido lembrou a frase atribuída a Tom Jobim:
No Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal…
Discutir por que vemos o sucesso do outro como ofensa é importante para compreender o Brasil. Pois a reação negativa ao sucesso aponta uma visão em que o êxito é concebido como um bem limitado, tal como assinalou o antropólogo George M. Foster num ensaio nascido de pesquisas sobre as orientações culturais latino-americanas.
Nele, Foster chama a atenção para essa concepção em que o êxito de alguém inibe o dos outros, que deixam de ganhar, pois o bem seria limitado.
Trata-se, diria eu, ampliando o insight de Foster, de um óbvio sintoma de sociedades mais relacionais e hierárquicas que individualistas. Sistemas conservadores e elitistas, que bloqueiam a ascensão social, pois cada qual deve ficar feliz em seu lugar, satisfazendo às diretrizes dos segmentos superiores. Nesses sistemas, há a ideia de que o lugar de cada um é fixo, de modo que os elos de todos com todos confirmam ou causam revolta quando um deles se destaca e, assim, alcança a faixa dos que nascem feitos ou dos grandes os que tudo podem…
A ideia oculta de que o poder, o prêmio e a felicidade são limitados contrasta com o fazer-se a si mesmo comum e surpreendente em outros sistemas. A busca de construir-se a si mesmo é certamente ofensiva nas sociedades em que ficar rico, ou subir na vida, é visto como ambição pecaminosa ou esperteza, pois normalmente cada qual deveria contentar-se com seu lugar. Se a ânsia por subir na vida é reprimida, o sucesso tem de vir de fora. Do elo com alguém poderoso, por sorte ou milagre.
A ascensão social promove desconfiança mesmo sendo merecida. Em sociedades como a nossa, conservadora e hierarquizada, surgem os malandros e os conspiradores, pois ninguém acredita que não exista algo por trás de um sucesso que ameaça o ideal reacionário de imobilidade.
Donde o populismo e seus irmãos: o salvacionismo e o negacionismo, tão nossos conhecidos. Neles há a suposição de que os integrantes do sistema contam pouco, e a presente crise é uma prova de que cada vez mais sabemos que os salvadores da pátria acabam salvando suas famílias e contas bancárias, pois quem pode nos salvar mudando o sistema somos nós mesmos os cidadãos comuns que começam a deixar de crer que existe um bem limitado para engendrar um sistema aberto, em que todos são premiados por seus talentos.
*Roberto DaMatta, antropólogo e escritor, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra
Fonte: O GLOBO